
Com a história diante dos olhos, quem participou da missa de exéquias do Papa Emérito Bento XVI presenciou o fim de um ciclo inédito. Um ciclo que começou com sua renúncia, em 11 de fevereiro de 2013, passou pela eleição do Papa Francisco, logo em seguida, e pela convivência longa, de quase dez anos, de dois Papas no Vaticano. Um “reinante”, em governo, e um retirado, ou “emérito”, palavra que em sua origem latina remete àquele que deixa as funções por merecimento, após ter o seu dever cumprido.
Esse ciclo se fechou. O corpo de Bento XVI, agora, descansa na cripta da Basílica de São Pedro, no mesmo túmulo que havia sido dedicado ao Papa João Paulo II, cujo corpo foi trasladado para o piso principal da igreja após sua beatificação. Bento XVI escolheu estar ali e, na morte, como na vida, é o Pontífice tímido que sucedeu a outro aclamado como Santo.
Um fim sereno
O clima na Praça de São Pedro na quinta-feira, 5, não era nem de grande comoção nem de estranheza – ainda que, pela primeira vez na história, um Papa estivesse presidindo o funeral do antecessor que acabara de morrer. Numa manhã fria e de neblina, o clima era de serenidade, oração, silêncio, uma profundidade de espírito e uma simplicidade que, de fato, fizeram lembrar a personalidade reflexiva e a introspecção de Bento XVI.
Quem estava ali sabia que presenciava o fim da vida, na terra, de um homem de 95 anos, cujo legado intelectual, teológico e espiritual, que precede o seu pontificado, será lembrado e estudado por muitos anos. Quem estava ali também presenciava o legado vivo de um Papa que marcou a história ao renunciar: uma Igreja que se reforma continuamente.
Bento XVI foi o primeiro Papa a renunciar por “falta de vigor”, como ele mesmo dizia, abrindo uma porta antes fechada. Agora, seus sucessores – inclusive o Papa Francisco – podem discernir e considerar a renúncia sem tabu, pois ele, o primeiro, discretamente rompeu esse lacre. Podem apresentar também esta opção ao Espírito Santo em suas orações.
Homenagem duradoura
Bento XVI normalizou a presença de dois Papas no Vaticano, que viveram em cordialidade e simplicidade algo que parecia bem complexo. O último encontro dos dois papas, neste mundo, foi ao final da missa, quando Francisco se inclinou diante do caixão. Imagem forte e que fica. Nunca antes um Papa honrou, dessa forma, o antecessor, vislumbrando o que pode um dia se tornar o seu próprio futuro.
Após quatro dias de homenagens ao Papa Emérito, que milhares de fiéis visitaram quando seu corpo foi exposto na basílica, o funeral se concluiu com a missa de exéquias, presidida pelo Papa Francisco, cujo rito de encomendação foi realizado pelo cardeal Giovanni Battista Re, decano do colégio de cardeais. Durante a oração inicial missa (coleta), que teve quase todas as partes do ritual fúnebre de um Papa, excluindo algumas referências exclusivas do Papa reinante, Francisco rezou: “Ó Deus, que no desenho de sua providência chamaste a guiar a Igreja o teu servo Bento, dai-lhe participar no céu da glória eterna do teu Filho, que ele serviu como vigário sobre a terra.”
O cortejo do corpo do Papa Emérito, carregado em um caixão de madeira de cipreste por funcionários do Vaticano na chegada e na saída, foi aplaudido várias vezes, por longos minutos. Um ou outro fiel carregava faixas que o exaltavam, com os dizeres italianos “Benedetto Magno”, que quer dizer, “Bento, o grande”, ou “Santo Subito”, que significa “Santo Já” – frase que foi muito presente no funeral do seu antecessor, João Paulo II.
Um Bom Pastor
O Papa Francisco atribuiu a Bento XVI, em sua pregação, as qualidades do Bom Pastor: dedicação “agradecida, orante, sustentada”. Hoje o “povo fiel” se reúne para confiar a Deus “a vida daquele que foi seu pastor”, disse. Como as mulheres no sepulcro de Cristo, esse povo traz “o perfume da gratidão e o óleo da esperança para demonstrar, mais uma vez”, o amor que não se perde”.

Como é tradição, o corpo de Bento XVI foi preparado como o de um Papa, exceto por alguns símbolos do pontífice reinante, como o báculo. Entre outros objetos, como medalhas e moedas cunhadas durante seu pontificado, deposita-se no túmulo também um texto, ou “ato”, que resume sua biografia e seus principais feitos.
“Dotado de vasto e profundo conhecimento bíblico e teológico, teve a extraordinária capacidade de elaborar sínteses esclarecedoras sobre os principais temas doutrinários e espirituais, bem como sobre questões cruciais da vida da Igreja e da cultura contemporânea”, diz o documento.
O ato também recorda suas palavras no momento de sua renúncia ao papado e na audiência geral que se seguiu, em 27 de fevereiro de 2013, quando ele declarou: “Continuarei a acompanhar o caminho da Igreja com a oração e a reflexão, com aquela dedicação ao Senhor e à sua Esposa que tenho procurado viver até agora todos os dias e que gostaria de viver sempre.” Para os que creem, o fim deste ciclo se abre, para Bento XVI, na eternidade.
Filipe Domingues
Especial para O São Paulo
Na Cidade do Vaticano
