O processo que levou à revisão do Código de Direito Canônico – a maior desde 1983 – não é de agora. Ele se insere em um longo caminho de consultas a especialistas nas leis da Igreja que vem desde o pontificado do Papa Bento XVI. Entretanto, a ênfase dada pelo Papa Francisco na publicação dos resultados é a mesma das reformas que vem realizando nas instituições da Cúria Romana e no Vaticano.
Em sua constituição apostólica Pascite gregem Dei, o Papa deixa claro que sua abordagem aos temas da lei é pastoral: “o Pastor é chamado a exercitar seu dever por meio de conselhos, persuasões, exemplos, mas também com autoridade e poder sagrado”, diz ele, citando a constituição dogmática Lumen gentium, do Concílio Vaticano II.
As regras da Igreja servem para “manter unido o povo de Deus” e orientar a missão dos bispos, responsáveis por guiá-lo e por “apascentar o rebanho”. Por isso mesmo, as normas não devem ter caráter apenas de punição, mas manifestar “a materna misericórdia da Igreja, que sabe ter sempre como finalidade a salvação das almas”, diz o Pontífice.
Desse modo, as alterações no livro VI do Código, afirma Francisco, servem para que os pastores possam aplicar melhor “com justiça e misericórdia” as penas que sejam necessárias para orientar o caminho dos fiéis. (leia mais)

Um contexto de reformas
A ideia de “reformar a Igreja” vem marcando o pontificado de Francisco, em parte por sua visão de Igreja, mas também porque essa foi uma orientação dos cardeais que o elegeram em 2013.
Pouco antes daquele conclave, em um discurso nas congregações que o preparavam, o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio dizia que a Igreja precisava sair rumo às periferias existenciais, deixar de ser autorreferencial e abandonar qualquer resquício de “mundanidade espiritual”, ou seja, de materialismo. Era preciso que Cristo, Bom Pastor, saísse ao encontro do povo.
Ele vem buscando imprimir isso na Cúria Romana.
Após a eleição, uma de suas primeiras medidas foi formar o Conselho de Cardeais, conhecido como C9, que se reúne esporadicamente para aconselhá-lo no processo de reforma. Também essa medida nasceu como proposta nas congregações pré-conclave. Desde 2014 eles começaram a revisar a constituição apostólica Pastor bonus, promulgada pelo Papa João Paulo II em 1988, o regimento da Cúria. A nova constituição, ainda em redação, vem sendo chamada de Praedicate evangelium.
Logo em seguida, foram reorganizados alguns dicastérios da Cúria, isto é, as instituições que ajudam o Papa a governar a Igreja desde Roma. Dali, Francisco já deixou claro que a Cúria “esteja a serviço da Igreja universal e das igrejas locais”, e não o contrário.
Temas das reformas
Papa Francisco já está no nono ano de pontificado, de modo que suas reformas se tornam cada vez mais consolidadas e cada vez mais difíceis de enumerar. Dentro dos objetivos pastorais dessas reformas, talvez três grandes temas se destacam: a reforma das finanças, a reforma das comunicações, e a reforma das estruturas que tratam dos temas de abuso de menores e pessoas vulneráveis.
Dentro das finanças, Francisco criou a Secretaria para a Economia, atualmente liderada pelo padre jesuíta Juan Antonio Guerrero Alves. O principal objetivo dessa reforma é unificar e organizar as finanças do Vaticano, dando-lhes mais transparência e adequando-as aos padrões internacionais. Busca-se evitar desvios, corrupção e má gestão dos recursos da Igreja. Esporadicamente, auditorias externas fiscalizam as contas e propõem mudanças.
No tema das comunicações, o Papa criou o Dicastério para a Comunicação, o primeiro da história dirigido por um homem leigo, o jornalista italiano Paolo Ruffini. Foram feitas alterações nas atividades unificando setores administrativos e centralizando a linha editorial em uma equipe de coordenação. Ela supervisiona todos os órgãos de comunicação do Vaticano, entre eles o site Vatican News, a Rádio Vaticano, o serviço de imagens e o jornal L’Osservatore Romano. Eles devem servir cada vez mais às igrejas locais, projetando o Papa e o Vaticano no mundo..
Sobre a questão dos abusos de menores e pessoas vulneráveis, Francisco deu passos decisivos, além de gestos pessoais (como encontrar e ouvir vítimas em privado). Um dos mais importantes foi a criação da Pontifícia Comissão para Tutela dos Menores, em 2014. O grupo de consultores orienta a ação da Igreja na prevenção e no combate aos abusos. Em 2019, o Papa convocou um encontro internacional de bispos sobre o tema. Publicou-se um manual, em 2020, sobre como eles devem lidar com denúncias, entre outras medidas.
A tudo isso soma-se um fortalecimento do Sínodo dos Bispos, instituição que coloca em diálogo o Papa, os bispos e o povo de Deus, que “caminham juntos”. Abrindo-se a um modelo mais consultivo, Francisco pretende dar espaço a uma Igreja menos “piramidal” e mais “sinodal”, como ele mesmo costuma dizer.
