Muito tem se falado da atual pandemia da Covid-19 como um ponto de mudança sem volta. Nas relações de trabalho, na economia, nas interações sociais. Mas o coronavírus também deixou sua marca com impactos importantes na Igreja Católica.
Mais do que nunca, como diz o Papa Francisco, vivemos uma “mudança de época”, e não uma “época de mudanças”. Ele mesmo criou uma comissão no Vaticano para refletir e apresentar propostas para que a Igreja reaja e supere a crise atual.
Alguns falam de uma “nova normalidade” no pós-pandemia, outros destacam que as coisas só voltarão a ser minimamente como antes quando for inventada uma vacina para o coronavírus.
Num exercício de futurismo, após quase seis meses de “quarentena”, proponho sete pontos sobre os quais lideranças da Igreja terão que refletir e atuar.
A relevância da Igreja no espaço público e, mais do que isso, a sua capacidade de aproximar de Deus os fiéis dependerá muito do contexto sanitário e econômico. Mas, além disso, dependerá também de suas próprias escolhas.
Abaixo, coloco 7 pontos de reflexão. São eles:
- Mais missas, menos gente
- Festas, devoções populares e grandes eventos
- A catequese e a formação dos sacerdotes
- Participação dos jovens e idosos
- Risco de centralização das decisões
- Reestruturação financeira e estratégias de ‘fundraising’
- A tecnologia como parte da rotina

1. Mais missas, menos gente
Uma das discussões mais calorosas que tivemos foi sobre quando e como reabrir as igrejas e retomar a celebração dos sacramentos. Nos lugares em que isso já ocorreu, grupos menores de fiéis puderam entrar nos templos, de preferência os que não são grupo de risco. Há um tempo, refleti mais sobre isso aqui.
A comunhão é distribuída à distância, com luvas, ou atrás de um painel de acrílico. Há lugares em que o sacerdote pega o Corpo de Cristo com uma pinça. Todos devem usar máscara e álcool em gel.
Até quando essa forma de celebrar a Eucaristia deve ser a regra, e não a exceção? Se precisamos de uma série de adereços e temos que estar distantes uns dos outros, estamos inserindo (ou retirando, como o “sinal da paz”) elementos da liturgia? Até que ponto nos afastamos do sentido original do sacramento? Qual é o limite?
A Igreja do futuro pós-pandemia terá de pensar nisso. Promover uma revalorização dos sacramentos ou até mesmo sua ressignificação. Isso não quer dizer dar novo sentido aos sacramentos, mas, em vez disso, reaproximá-los do seu sentido original.
A pandemia nos trouxe um risco evidente: um materialismo sacramental individualista. A Eucaristia é consumo, mas não é apenas material, é transcendente. Um bem concreto e espiritual, proporcionado no seio da comunidade.
Uma das formas já adotadas em muitos lugares é celebrar os sacramentos com menos pessoas, mas com maior frequência, e até mesmo fora dos templos e de forma representativa.
Entretanto, isso tende a sugar mais tempo dos padres e dificultar outras atividades pastorais. Um desafio já conhecido, mas que agora se agrava.
2. Festas, devoções populares e grandes eventos
Em muitas partes do mundo, as datas festivas da Igreja são, além de litúrgicas, ocasião para reunir as pessoas em torno de comidas típicas, danças, mercados de rua, etc. Além disso, as devoções populares, como as procissões, também marcam muitas dessas situações. Os grandes eventos, como a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e as viagens papais estão comprometidos, porque promovem enormes aglomerações.
Muitas dessas devoções e festas, quando não diretamente associadas à Igreja, podem agravar a perda de relevância da igreja institucional na sociedade.
Já antes da pandemia via-se, em algumas realidades, uma clara distinção entre os frequentadores desses eventos e os que se sentem parte da Igreja institucional. Muitas festas populares, por exemplo, se tornaram mais uma tradição cultural do que religiosa e reúnem pessoas de todos os tipos.
A pandemia agrava essa noção porque reforça a separação entre a data festiva e o evento litúrgico, como a Eucaristia celebrada em honra de um santo, por exemplo, e a participação na comunidade. Isso ficou evidente na esvaziada Semana Santa de 2020.
De que forma poderá a Igreja, então, preservar, alimentar e incorporar essas tradições? A pandemia tende a incentivar o fiel a ter uma relação pessoal “direta” com Cristo e os santos, sem passar pelas práticas institucionais ou a comunidade.
A autonomia do indivíduo religioso já é bastante comum. A pandemia reforça a busca de um “Deus pessoal”?
3. A catequese e a formação dos sacerdotes
Na maioria dos lugares, cursos de catequese de crianças foram suspensos. Em alguns, realizam-se encontros online. O mesmo para a educação formal dos seminaristas, religiosos e religiosas. As aulas em algumas universidades podem ser feitas online.
Mas já está evidente que a formação vai muito além do que é ensinado em aula. 2020, para muitos, é um ano perdido.
As igrejas locais terão que repensar o formato da catequese, especialmente para crianças, quando a catequese tende a assumir uma estrutura mais vertical. Não podemos pensar que tudo voltará como era antes. Onde esses encontros ainda são feitos como uma espécie de “aula” na qual o catequista “ensina” conceitos, a catequese está em grande risco.
Assim como o setor educacional, a experiência da formação fora da sala de aula terá que ser incrementada de outras formas.
Se os jovens do pré-pandemia já não aceitavam respostas prontas vindas de cima, o que dizer das gerações do pós-pandemia?
Isso vale também para os jovens em formação na vida consagrada e sacerdotal. De que maneira poderá a Igreja promover essa educação e a iniciação, indo além das experiências formais?

4. Participação dos jovens e idosos
Pessoas idosas são as que sofrem mais risco de morte pelo coronavírus. Mas também são a maioria dos fiéis em muitas comunidades. São os idosos que lideram uma série de atividades pastorais, obras de caridade, são grandes doadores e ocupam papéis de coordenação.
Por outro lado, os mais jovens tampouco podem viver a Igreja como antes. Muitas atividades de grupos de jovens tiveram que ser suspensas. E muitos jovens ainda são jovens demais para assumir postos de liderança no lugar dos mais velhos; precisam de um maior acompanhamento e orientação.
A pandemia afasta os jovens dos velhos e tende a colocar as pessoas de meia idade – entre os 30 e 50 anos – no centro da maior parte das atividades.
Ela reforça uma dinâmica denunciada tantas vezes pelo Papa Francisco: jovens e velhos tendem a ser excluídos da sociedade, por causa da “cultura do descarte”.
Como a Igreja pretende, então, reaproximar os idosos dos jovens e mantê-los ativos membros das comunidades?

5. Risco de centralização das decisões
A Igreja já tem uma estrutura de poder bastante centralizada, mas reformas das últimas décadas, como o desenvolvimento do Sínodo dos Bispos e o fortalecimento das conferências episcopais, por exemplo, têm decentralizado algumas decisões. Essa parece ser uma intenção do Papa Francisco.
No entanto, é comum que, em situações de crise, as decisões sejam centralizadas em uma pessoa ou em um pequeno grupo de pessoas.
Processos de consulta tendem a exigir um grande esforço e uma estrutura organizativa para que sejam bem feitos. Levam tempo. E, numa crise, muitas decisões precisam ser tomadas com velocidade e poucas informações.
A Igreja pós-pandemia será desafiada a fazer escolhas e uma delas é sobre a autenticidade e a eficiência da decentralização.
Até que ponto podemos deixar grandes decisões nas mãos de líderes locais? Como ter líderes bem informados? Até que ponto eles devem ser auxiliados por estruturas consultivas mais sólidas, perenes e inclusivas?
O retorno à centralização é uma das maiores tentações da Igreja no pós-pandemia.
6. Reestruturação financeira e estratégias de ‘fundraising’
Todas as instituições, dentro e fora da Igreja, foram forçadas a rever sua organização e sua ordem financeira. Todos precisarão fazer uma reestruturação. No caso da Igreja, e especialmente de obras de caridade e sem fins lucrativos, que dependem de doações, práticas financeiras mais transparentes serão essenciais.

No pós-pandemia, inúmeras instituições precisarão de ajuda financeira. Os doadores terão que escolher entre ajudar esta ou aquela instituição, como já fazem, mas num contexto muito mais árduo e complexo.
É bem possível que os recursos se direcionem a instituições de maior impacto, deixando os pequenos desamparados.
Em igrejas de alguns países, como os Estados Unidos e a Alemanha, a adoção de práticas financeiras conforme padrões globais já é bem comum, mas em boa parte do mundo ainda não. A Igreja do pós-pandemia precisará ser mais atenta.
Os grupos menores precisarão de mais ajuda para sobreviver e, talvez, essa ajuda passe por uma melhor organização financeira e uma renovação das atividades de levantamentos de recursos (fundraising).
7. A tecnologia como parte da rotina
É um erro dizer que o “virtual” e o “real” são duas coisas separadas. Hoje, nós vivemos em uma única realidade formada por ambientes concretos e ambientes digitais. Durante a pandemia, a Igreja foi forçada a se expor mais nos ambientes digitais. As missas online foram a manifestação mais difusa disso.
Embora tida como uma espécie de medida de emergência, o uso da tecnologia na Igreja precisará ser repensado e consolidado. Está claro que a “missa online” não satisfaz o fiel nem a comunidade da mesma forma que a missa presencial.
Mas é possível que uma parte dessa e de outras inovações permaneçam no pós-pandemia.

Os ambientes digitais e concretos precisam ser entendidos como complementares. Transmitir a missa online não quer dizer desincentivar a participação presencial.
A presença dos cristãos nos ambientes digitais nem sempre é um testemunho do Evangelho. A Igreja do pós-pandemia precisa se engajar numa reflexão ética sobre os ambientes digitais e adotar essas práticas com mais convicção. Até quando veremos pessoas que se dizem cristãs se digladiando nas redes sociais?
Ainda não se sabe se, após a pandemia, as pessoas voltarão em massa para os templos ou se vão sumir de vez.
Mas está mais do que claro que o que faz a pessoa querer participar com frequência dos sacramentos não é só a forma como eles são entregues, mas sim uma profunda compreensão dos seus significados, o desejo do encontro real com Jesus Cristo e um entendimento do que é ser membro da comunidade cristã.

