Análise: Questionamentos sobre a reabertura das paróquias católicas no Brasil com a Covid-19

Tenho questionado a reabertura das igrejas no Brasil em meio à pandemia da Covid-19 e a um aumento no número de casos. Recebi reações positivas e negativas, por isso resolvi elaborar aqui uma parte do que penso.

Embora essa reabertura seja, quase sempre, feita com boas intenções, creio que o problema deva ser olhado por dois ângulos: um é o sanitário, e o segundo é o eclesiológico, ou seja, uma reflexão sobre a essência da Igreja nestes tempos, sua missão e seus significados.

Considerando que a quarentena no Brasil já se prolonga por tempo demais, por falta de coordenação política nacional, deveria-se pensar em formas de reabrir de forma segura, mas sem abandonar o sentido original da Eucaristia, risco que corremos no modelo atual.

Foto: Visual Hunt

Aspecto sanitário

A Igreja reflete os problemas da sociedade. Ela não é uma ilha. Se há desigualdade em um país, a Igreja é desigual. Se há preconceito ou polarização ideológica, também nela haverá. Se há um espírito de coletividade, a Igreja o manifesta grandiosamente.

No Brasil, atualmente há uma espécie de “negacionismo” em relação à pandemia, em grande parte promovido por nossos líderes políticos. Falta autoridade e coordenação nacional na gestão da crise sanitária. Parte da Igreja acompanha essa onda.

Mas, do ponto de vista sanitário, a consequência dessa falta de coordenação é que também as dioceses e paróquias vêm seguindo regras próprias, conforme a realidade local. Muitas vezes não em sintonia com as orientações dos próprios governos – como é o caso do estado de São Paulo.

A maioria delas adotou normas, como o uso de máscaras e o distanciamento social, para minimizar as chances de contágio. Porém, em muitas permite-se a lotação de 30% da capacidade do templo, o que pode abrir as portas para centenas de pessoas. Pessoas idosas ou em condições de risco são convidadas a não participar, mas até voluntários que organizam as missas são idosos ou têm condicionamentos.

Essas normas dão a sensação de segurança. Talvez se seguidas com rigor limitem os riscos de contaminação. Mas não os eliminam.

Igrejas são um convite à aglomeração

Olhando paras as ruas do Brasil, vemos claramente que as pessoas não seguem as normas com precisão e não há porque crer que as seguirão dentro dos templos. (Por exemplo: a comunhão continua sendo dada na boca em diversas igrejas, mesmo com as restrições sanitárias.)

Foto – Link original

Há que se questionar se as paróquias têm capacidade de organização e limpeza. Uma única falha, como na retirada da máscara para receber a comunhão, pode ser fatal.

Além disso, a sanificação correta de todos os ambientes custa caro e nem todas as paróquias podem pagar por uma rígida limpeza semanal.

Deveria prevalecer na Igreja, portanto, o chamado “princípio da precaução”, que é ético e científico, e leva em conta as incertezas dos fenônemos novos. Quando faltam informações técnicas e científicas sobre um novo elemento (no nosso caso o coronavírus e sua capacidade de transmissão), adotam-se as medidas que nos expõem a menos riscos.

O Brasil não controlou a circulação do vírus como na Europa ou em outras partes do mundo. Por isso, não podemos falar em reabertura da mesma forma que foi feita em outros lugares. Temos adotado esse modelo “estrangeiro”, sob condições muito diferentes.

É preciso ter um modelo próprio de retomada (e proponho algo simples no fim do texto).

Aspecto eclesiológico

Por outro lado, há também o que chamo de aspecto “eclesiológico” do problema, que igualmente deveria influenciar decisões sobre reabertura. Tratam-se dos riscos e oportunidades de uma reorganização ou redefinição da Igreja sob a pandemia e depois dela.

A Igreja Católica tem dificuldades para dar respostas novas a problemas novos. É algo histórico, mas ficou bem claro nesta crise. Mas o potencial criativo e de adaptação da Igreja é enorme.

Para encontrar novas formas de chegar às pessoas, criaram-se missas e formações online, mas também houve uma série de ações sociais inovadoras.

Reaprender a ser Igreja

A Igreja teve que reaprender a ser Igreja em tempos de crise – até o Papa Francisco criou uma comissão para pensar na Covid-19 no Vaticano. São questões que aparecem também em tempos de guerra e perseguição religiosa. E que vão continuar vivas nos próximos anos.

Foto: Vatican News

No Brasil, estávamos indo bem. Mas faltou fôlego. A pressão política e social levou as igrejas a recuarem essas iniciativas e tentarem voltar tudo como era antes.

Faltaram novas formas de vivenciar a espiritualidade que fossem temporariamente substitutivas, ou ao menos complementares, aos sacramentos. Algo que fosse duradouro e desse conforto às pessoas na ausência das missas – sabendo que a Eucaristia é, na verdade, insubstituível.

Agora estamos aqui brigando para achar um jeito de reabrir as igrejas, mesmo que isso represente um risco adicional às pessoas, e mesmo que o mundo já não seja mais o mesmo.

Para essa reabertura, criaram-se, em alguns lugares, instrumentos como a distribuição de senhas ou reservas de lugar pela internet (como aquelas usadas em shows) para quem quiser participar.

Corre-se o risco de transformar a igreja paroquial numa mera distribuidora de serviços, e não mais na casa que congrega a comunidade.

Ir à missa se tornou uma escolha pessoal. Não há mais o preceito (obrigação), você “vai se quiser e se sentir seguro”.

Estamos abrindo as igrejas para que os 30% que se creem mais fortes, corajosos e rápidos para reservar um lugar. Terão acesso a esse privilégio expondo ao vírus a si mesmos e aos outros com os quais se relacionam, com a ilusão de que o ambiente hermético e “superlimpo” do templo irá protegê-los.

Mas esta não é a lógica cristã. É uma lógica de consumo. É a simples e velha métrica “qualidade da celebração x quantidade de fiéis”.

Sobre isso, lanço três questões:

  1. De que forma reabrir sem fazer prevalecer a ideia de que a Igreja simplesmente oferece serviços? A Eucaristia é memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo (atualiza seu sacrifício, é a entrega de Cristo à humanidade). É também ato de ação de graças da comunidade a Deus. Parece normal reservar lugares para os fortes e deixar de fora os velhos e doentes? Mesmo que seja uma exigência sanitária, se nos conformamos com isso, é porque a Igreja já está atribuindo novos significados aos seus ritos.
  2. Individualismo e o materialismo sacramental são um risco. Isto é, a separação da Eucarista da comunidade cristã. A Eucaristia é alimento e remédio para a alma do indivíduo, mas sua celebração é no seio da comunidade, na qual todos são convidados por Cristo à sua mesa. De que forma deixar claro que a comunhão não se faz só pelo próprio bem espiritual? De que forma deixar claro que a comunhão não se expressa só materialmente? De que forma manter o espírito de comunidade para os 70% que não podem entrar?
  3. A reabertura das igrejas demanda enorme energia e atenção dos seus líderes. Pode haver uma tendência, portanto, a deixar de lado ações que envolvam as pessoas que ainda não podem ir à igreja, que são justamente as pessoas em situações de risco (idosos e doentes). Não basta retirar o preceito, é preciso inclui-los de novas formas. De que forma manter um ministério ativo que vá além da celebração dos sacramentos e que alcance também essas pessoas?
Foto: Catholic Church (England and Wales) / Visual Hunt

Uma simples proposta

A Igreja parece ter refletido muito sobre o lado sanitário da atual crise quando avaliou a reabertura. Mas, aparentemente, pouco foi pensado sobre o lado eclesiológico, que também é latente e tem efeitos de longo prazo.

Uma forma de preservar o sentido da Eucaristia é realizar celebrações de forma representativa, com pequeno número de pessoas – 10 ou 15 por exemplo – e não as centenas dos que chegarem primeiro na fila com o “ticket de entrada”.

Essas celebrações podem ser feitas em igrejas ou em casas, quintais, praças, lugares abertos, com visitas do padre.

Uma espécie de “rodízio” ou “revezamento” permitiria que algumas pessoas celebrassem em nome de toda a comunidade até que TODOS possam voltar com segurança.

Esse grupo representaria toda a comunidade. Com alguma organização, é possível fazer com relativa segurança.

A diferença em relação à reabertura quase indiscriminada dos templos é que, mesmo com uma seleção de pessoas, isso seria feito tendo em conta o seio da comunidade e uma maior inclusão dos mais frágeis, ainda que simbólica, porque o restante da comunidade estaria “ausente junto com eles”.

E os ministérios deveriam continuar ativos de outras formas, além da missa. No modelo atual, os que não podem ir à missa se sentem ainda mais excluídos do que antes, quando ela era “proibida” para todos.

Esta é apenas uma sugestão, que poderia ser lapidada, mas outras poderiam nascer, desde que pensadas em sentido eclesiológico, e não somente sanitário.

Há que se reconhecer que a situação varia de paróquia para paróquia e que em muitos casos há um bom envolvimento da comunidade em diferentes iniciativas. Na maioria dos casos, os líderes estão tentando acertar e não tiveram tempo para refletir. Precisam decidir conforme orientações de autoridades sanitárias – elas mesmas bastante confusas.

Ainda assim, o tempo de aprofundar nossa reflexão chegou. Ou nos unimos na dor – e celebramos de forma simbolicamente representativa – ou estamos dividindo o Corpo de Cristo entre os que podem ir à igreja e os que não podem. E os que não podem ficam do lado de fora, sem o convite de entrada para a Ceia.

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