Uma carta de amor à Amazônia. Assim definiu o cardeal Michael Czerny a exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia“, do Papa Francisco, publicada no dia 12. O documento é uma reflexão do Papa após o Sínodo para a Amazônia, a assembleia especial do Sínodo dos Bispos dedicada exclusivamente à região amazônica.
- Esta análise foi publicada originalmente no jornal O São Paulo
- Veja os principais pontos do documento do Papa sobre a Amazônia
A enorme diversidade de povos tradicionais, a presença da Igreja há mais de 400 anos na região, o surgimento de grandes cidades, as migrações, as comunidades isoladas, as disputas por território e o esgotamento das riquezas naturais colocam a Amazônia no centro de um intenso debate internacional.
O que se faz da Amazônia hoje determinará que tipo de sociedade global seremos amanhã. Por isso, o Papa apresentou seus quatro “sonhos” para a Amazônia nessa “carta de amor”. O primeiro deles é social, o segundo é cultural, o terceiro é ecológico e o quarto, eclesial.
Em uma série de quatro análises, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para essas categorias, começando pelo sonho social.

Crise ecológica é também social
Com o auxílio da ciência, o Papa Francisco faz um diagnóstico importante: os problemas ecológicos e os problemas sociais têm a mesma raiz. Ele afirmava isso já em sua Encíclica “Laudato Si’”, de 2015.
Esse alerta para o mundo se repete com força em “Querida Amazônia”. A crítica a um modelo econômico que explora a natureza de maneira desenfreada, priorizando o lucro sobre a “casa comum”, o planeta Terra, é a mesma contra a perpetuação das desigualdades sociais.
O “clamor da terra” é, também, “o clamor dos pobres”, diz ele (QA 8). Os povos nativos e os mais pobres são os mais afetados pela destruição da natureza, que acentua os desastres naturais, a perda de seus territórios, as migrações forçadas, a pobreza, o tráfico de pessoas, o crescimento das periferias de grandes cidades e a corrupção (QA 10,21).
Por isso, o Papa Francisco sonha “com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos originários, dos últimos, em que sua voz seja escutada e sua dignidade seja promovida”. Da mesma forma, não basta defender a natureza e esquecer a vida humana. “Não nos serve um conservacionismo que se preocupa com o bioma, mas ignora os povos amazônicos”, escreve (QA. 7, 8).

Um espaço a ser ocupado?
Por trás da promessa de desenvolvimento da Amazônia, que, na verdade, leva dor e sofrimento aos povos locais, está uma concepção errada de que a Amazônia é “um espaço vazio a ser ocupado”, afirma o Papa Francisco.
Em “Querida Amazônia”, ele observa que a Amazônia não é “uma riqueza bruta que deve se desenvolver” e tampouco “uma imensidade selvagem que deve ser domesticada”. Pelo contrário, é necessário respeitar a presença e as tradições dos povos nativos e as terras que a eles sempre pertenceram (QA 12,13).
Direito dos povos
O Papa Francisco dá voz aos povos indígenas ao repetir um apelo que é comum entre os que defendem seus interesses: qualquer iniciativa ou projeto que envolva a Amazônia deve, necessariamente, consultar os povos tradicionais, principais “interlocutores” da região (QA 25).
“Aos empreendimentos, nacionais ou internacionais, que causam dano na Amazônia e não respeitam o direito dos povos originários ao território e à sua demarcação, à sua autodeterminação e ao consentimento prévio, há que dar-lhes os nomes que lhes correspondem: injustiça e crime.”
Papa Francisco, ‘Querida Amazônia’, n. 14
A privatização da água potável, a exploração ilegal de madeira, a extração de petróleo, a construção de grandes estradas e usinas hidrelétricas, o garimpo, a expansão da fronteira do agronegócio, essas e outras atividades, quando realizadas fora da lei e com a conivência dos governos, “contaminam o ambiente e transformam indevidamente as relações econômicas, e se convertem em um instrumento que mata” (QA 14).
Ele lembra que a sociedade ocidental pode aprender com os indígenas a ter “um forte sentido comunitário” (QA 20), em suas relações humanas, ritos e celebrações.

Desigualdade extrema
Alguns dos donos do poder chegam a tirar a vida daqueles que se opõem à expansão de seus negócios ilegais, provocando também incêndios florestais intencionais e subornando políticos. As disparidades na Amazônia entre os poderosos e os pobres criam “novas formas de escravidão”, diz o Papa.
Essas mazelas são acompanhadas de violações dos direitos humanos, do tráfico de pessoas, especialmente das mulheres, e do tráfico de drogas. “Não podemos permitir que a globalização se converta em um novo tipo de colonialismo”, denuncia (QA 14).
“A disparidade de poder é enorme, os fracos não têm recursos para se defender. Enquanto o ganhador continua levando tudo para si, os povos pobres permanecem sempre pobres, e os ricos se fazem cada vez mais ricos.”
Papa Francisco, ‘Querida Amazônia, n. 13
Ele também reconhece que, muitas vezes, membros da própria Igreja estiveram metidos nos jogos de poder. No período colonial, foram cometidos erros históricos de injustiça e crueldade.
O Papa admite que, por vezes, “o trigo se misturou com o joio” e foram cometidos “crimes contra os povos originários durante a chamada conquista da América” (QA 19). Por esses erros ele, mais uma vez, pediu perdão.
Sã indignação
A primeira reação necessária a todos os problemas sociais da Amazônia, defende Francisco, é a indignação. “É necessário indignar-se […] Não é saudável que nos acostumemos com o mal”, diz o Pontífice.
No entanto, “ao mesmo tempo que deixamos brotar uma sã indignação, recordamos que sempre é possível superar as diversas mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e desenvolvimento”, respeitando o meio ambiente e as diferentes culturas da Amazônia (QA 17).
Francisco também recorda o valor dos missionários que se indignaram e chegaram à Amazônia, especialmente nas últimas décadas, deixando seus países e adotando um estilo de vida simples, levando o Evangelho aos que mais sofrem.
“No momento atual, a Igreja não pode estar menos comprometida, e é chamada a escutar o clamor dos povos amazônicos para poder exercer com transparência seu papel profético”, exorta o Papa (QA 19).
Uma Igreja de rosto amazônico que acompanha os pobres é o sonho social do Papa Francisco para a Amazônia.
Isso inclui ver a Amazônia livre da “discriminação e da dominação” entre seres humanos e, no lugar disso, “relações fraternas” e reconhecimento mútuo (QAm 22). Pois, se tudo está interligado, escutar o outro “é um dever de justiça” (QA 26).

